segunda-feira, 8 de julho de 2013

Afinando a percepção

Trabalhei um bom tempo coletando leitura e entregando faturas (contas de água), na cidade Ribeirão das neves. É interessante que a cada dia de trabalho se aprende algo novo. O trabalho de um leiturista consiste em anotar a leitura do hidrômetro (medidor de água), digitando-a em um coletor conectado a uma mini impressora que processa essa leitura e imprime a fatura na hora (on line). Pois bem, num desses dias quando coletava leituras em uma vila, mais precisamente em um beco chamado “Beco do dragão”, pude ouvir uma voz que dizia:   
_ Aquele ladrão da copasa já me roubou novamente, esta fatura está muito cara, não gasto esta quantia nunca, se eu me encontrar com ele vou soltar os cachorros.
Fiquei a ouvir aqueles palavrões a certa distancia, já que me encontrava dentro de um desses cantinhos nos quais as pessoas protegem seus padrões de água e a cliente “linguaruda”, não podia me ver, mas o certo é que havia uma segunda pessoa que com ela conversava e por sua vez essa me defendia dizendo:     
_ Olha, o leiturista fez sua leitura hoje, não acredito que ele tenha inventado esta fatura pra você. O interessante é que eu podia ver as personagens, mas não conseguia perceber de quem eram as vozes. Minha intuição dizia que aquela voz que me xingava e me ridicularizava certamente pertencia àquela senhora dos cabelos cor de fogo e espetados, silhueta típica de mulher barraqueira, magra, quase raquítica, varias pulseiras adornavam seu fino e longo braço e quando de costas podia ver uma fileira de estrelas tatuadas em sua nuca. Por outro lado aquela senhora bem vistosa, com ares de graduação científica, com voz doce estava ali para interceder por mim, me afeiçoei logo de cara, pude ainda dar mais uma olhada em meu algoz, aquela mulherzinha, quase uma bruxa... Porque se divertia tanto tocando terror nas pessoas com aqueles palavrões?                 
Tamanha foi minha surpresa, quando constatei que fora traído por minha percepção, a bruxa era a dona da voz doce e a bonitona era a bruxa!!!
Fiquei por um bom tempo a pensar como podemos errar quando fazemos pré julgamentos. Nossa percepção pode facilmente nos trair e nos fazer incorrer em erros terríveis. Nesse dia pude aprender muito e guardei uma bela lição: os olhos e os ouvidos devem trabalhar juntos. 
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Donizete Satírio de carvalho

Outonos e primaveras...

Primavera é tempo de ressurreição. A vida cumpre o ofício de florescer ao seu tempo. O que hoje está revestido de cores precisou passar pelo silêncio das sombras. A vida não é por acaso. Ela é fruto do processo que a encaminha sem pressa e sem atropelos a um destino que não finda, porque é ciclo que a faz continuar em insondáveis movimentos de vida e morte. O florido sobre a terra não é acontecimento sem precedências. Antes da flor, a morte da semente, o suspiro dissonante de quem se desprende do que é para ser revestido de outras grandezas. O que hoje vejo e reconheço belo é apenas uma parte do processo. O que eu não pude ver é o que sustenta a beleza. A arte de morrer em silêncio é atributo que pertence às sementes. A dureza do chão não permite que os nossos olhos alcancem o acontecimento. Antes de ser flor, a primavera é chão escuro de sombras, vida se entregando ao dialético movimento de uma morte anunciada, cumprida em partes. A primavera só pode ser o que é porque o outono lhe embalou em seus braços. Outono é o tempo em que as sementes deitam sobre a terra seus destinos de fecundidade. É o tempo em que à morte se entregam esperançosas de ressurreição. Outono é a maternidade das floradas, dos cantos das cigarras e dos assovios dos ventos. Outono é a preparação das aquarelas, dos trabalhos silenciosos que não causam alardes, mas que mais tarde serão fundamentais para o sustento da beleza que há de vir. São as estações do tempo. São as estações da vida. Há em nossos dias uma infinidade de cenas que podemos reconhecer a partir da mística dos outonos e das primaveras. Também nós cumprimos em nossa carne humana os mesmos destinos. Destino de morrer em pequenas partes, mediante sacrifícios que nos faz abraçar o silêncio das sombras...
Destino de florescer costurados em cores, alçados por alegrias que nos caem do céu, quando menos esperadas, anunciando que depois de outonos, a vida sempre nos reserva primaveras...
Floresçamos.


Padre Fabio de Melo.